Tratando de Educação e Religião, como tema principal, pois
entendemos que as questões religiosas estejam impregnadas na vida escolar, uma
vez que fazem parte da experiência de alunos, pais e professores, nos deparamos
também com as questões do ER - Ensino Religioso. Uma delas é a justificativa da
presença dessa disciplina na escola como sendo um espaço para o diálogo entre
as diferentes confissões religiosas. A questão é que se as religiões não
dialogam, será que seu estudo pode promover o diálogo?
No que concerne ao ER, a proposição de reverência às crenças
alheias parece muito distante da realidade, aparentemente impossível de se
realizar concretamente. Segundo elas mesmas, todas as religiões originam-se do
amor. Mas vejamos o que nos diz Daniel Dennet em seu Quebrando o encanto: a religião como fenômeno natural: “O fato de tanta gente amar suas religiões,
tanto quanto ou mais do que qualquer outra coisa na vida, é realmente um fato a
ser ponderado. Eu estou inclinado a achar que nada poderia ter mais
importância do que aquilo que as
pessoas amam. [...] O amor é cego, como se diz, e como o amor é cego, muitas
vezes leva à tragédia: há conflitos nos quais um amor é jogado contra outro
amor, e alguém tem que ceder, com sofrimento garantido em qualquer resolução”.
(2006, p. 269)
Como vimos, Dennett aponta para o risco a
que uma visão distorcida do amor, no que concerne ao campo religioso, pode nos
conduzir, ou seja, aos fanatismos e fundamentalismos religiosos, conforme será
demonstrado ao longo de sua obra e ao que chamará de formas cada vez mais tóxicas de religião.
Também os PCNER – Parâmetros Curriculares
Nacionais para o Ensino Religioso, tratando da tradição religiosa e da
construção da paz, reconhecem que “Lamentavelmente, o que predomina no mundo é
o fanatismo que se propaga nas mais diversas esferas, agindo e apelando sempre
para o Transcendente, a Fé, a História e
a Justiça Universal, a fim de legitimar seus direitos irrestritos e a supressão
dos direitos do outro. Portanto, o não reconhecimento do outro sustenta a
atitude de fanáticos e idealistas”. (FONAPER,
1997, p. 20).
Dessa compreensão decorre a proposta para o
ER: “O Ensino Religioso necessita
cultivar a reverência, ressaltando pela alteridade que todos são irmãos. [...]
Só então a sociedade irá se conscientizando de que atingirá seus objetivos
desarmando o espírito e se empenhando, com determinação, pelo entendimento
mútuo”. (p. 20-21). Vamos às controvérsias:
Nos PCNER, o objetivo é cultivar a reverência via
reconhecimento da alteridade, de modo a desarmar o espírito pelo entendimento
mútuo. O eixo, que possibilitará a passagem dessa intencionalidade para a
prática pedagógica, especificamente, os conteúdos, é a moral humana entendida
como o sentido do ser, formado na percepção de valores. A alteridade será
contemplada mediante o relacionamento com o outro; os valores e limites serão
compreendidos a partir da compreensão dos valores e limites internos às
diferentes tradições religiosas. Parece-nos que há controvérsias quanto a esse
deslocamento do indivíduo para a instituição religiosa, pois, na escola, se
tratarmos das Tradições/instituições religiosas, ao contrário da tolerância,
traremos à baila as questões internas à essas instituições e que são aquelas
que, justamente, inviabilizam o diálogo entre elas. Os valores e a moral são
muito diferentes dentro das diferentes propostas religiosas.
Tomemos, como exemplo, a perspectiva do cristianismo abordado
no eixo moral humana. Chegando aos conteúdos teremos que trabalhar, para sermos
fiéis ao ponto de vista da instituição, os valores e limites intrínsecos ao
cristianismo, claramente expostos pela Doutrina Social da Igreja, do que
decorre que estamos no lugar apontado pelo Grupo do Não (em nossa dissertação de mestrado acerca das
fontes do Ensino Religioso, chamamos assim os articulistas do jornal Folha de
São Paulo e O Estadão, que se manifestaram contrários à implantação do ER,
neste estado, no momento da publicação da Deliberação CEE 16/2001). Para esse
grupo, tratar de valores e limites do ponto de vista de uma instituição
religiosa é tocar em questões importantes, do ponto de vista da
experiência e da vida dos educandos, mediados por uma perspectiva
necessariamente normativa, e assim será seja qual for a religião tomada como
ponto de partida.
Se, de outro lado, ainda segundo os PCNER, considerarmos o
fenômeno religioso, consequentemente, mais propriamente a experiência
religiosa, como o ER poderá ser capaz de estabelecer significados, uma vez que,
da maneira como está ali proposto, corre o risco de permanecer na descrição dos
fenômenos? Como estabelecer significados para a vida pessoal dos educandos e,
conseqüentemente, para a vida que vivem juntos, ou seja, suas relações no
espaço/tempo da escola? Por último, apresentamos os objetivos da disciplina:
Proporcionar o conhecimento
dos elementos básicos que compõem o fenômeno religioso, a partir das
experiências religiosas percebidas no contexto do educando; subsidiar o
educando na formulação do questionamento existencial, em profundidade, para dar
sua resposta devidamente informado; analisar o papel das tradições religiosas
na estruturação e manutenção das diferentes culturas e manifestações
sócio-culturais; facilitar a compreensão do significado das afirmações e
verdades de fé das tradições religiosas; refletir o sentido da atitude moral,
como conseqüência do fenômeno religioso e expressão da consciência e da
resposta pessoal e comunitária do ser humano; possibilitar esclarecimentos sobre o direito à diferença na construção
de estruturas religiosas que têm na liberdade o seu valor inalienável.
(FONAPER, 1997, pp.30-31).
E ainda: “Entende-se o
conhecimento religioso, mesmo revelado, como um conhecimento humano. É a
reflexão a partir do conhecimento que possibilita uma compreensão do ser humano
como finito. É na finitude que se procura fundamentar o fenômeno religioso, que
torna o ser humano capaz de construir-se na liberdade. (p.21). Questões mais específicas: o
conhecimento revelado como conhecimento humano suporia crença na revelação? Se
a compreensão da finitude é a raiz do fenômeno religioso, como ficam os
não-crentes? Extrapolando um pouco: a instituição religiosa é, necessariamente
ou somente, o lugar em que se dá o fenômeno religioso? Lendo os conteúdos
propostos parece que não, mas de outro modo, a experiência religiosa necessária
somente está contida na instituição ou na experiência que esta possibilita ao
crente? E a experiência do não-crente? Se é o fenômeno religioso que torna o
ser humano capaz de constituir-se na liberdade, as experiências
fundamentalistas não são fenômenos religiosos? Há um critério para a definição
de bons e maus fenômenos religiosos?
Segundo os PCNER: “Todo o
conhecimento humano torna-se patrimônio da humanidade. A sua utilização, porém,
depende de condições sociais e econômicas bem como das finalidades para as
quais são utilizados. Nem todo conhecimento é de interesse de todos. Um
conhecimento político ou religioso pode não interessar a um grupo, mas, uma vez
produzido, é patrimônio humano e como tal deve estar disponível. (p.22).
Especificamente, se a utilização do conhecimento depende de
condições sociais e econômicas e das finalidades de sua utilização, estamos
admitindo a perspectiva utilitarista como lente para leitura de mundo, de Deus
e do homem? De maneira mais geral, o conhecimento, sob esse prisma,
utilitarista, não poderia ser uma ou A fonte de cientificismos e
fundamentalismos de todos os tipos? Ainda especificamente, estamos
privilegiando o social, inclusive, acreditando-o determinante? Se o
conhecimento político ou religioso pode não interessar a um grupo, quais os
critérios para definirmos sua apresentação nas aulas de ER? De que forma o
conhecimento político, perguntando-se antes por seu significado, interessa às
aulas de ER?
“Por questões éticas e religiosas, e
pela própria natureza da Escola, não é função dela propor aos educandos a
adesão e vivência desses conhecimentos, enquanto princípios de conduta
religiosa e confessional, já que esses são sempre propriedade de uma
determinada religião”. (FONAPER, 1997, p. 22). Quais são as
questões religiosas que indicam que não é função da escola propor aos educandos
a adesão e vivência desses conhecimentos - os religiosos? Alguma religião será
tomada como critério? Qual? O que significa vivenciar conhecimentos?
Em termos de referenciais, considerados a partir das Ciência(s)
da(s) Religião(ões), constatamos que a perspectiva teórica do Fórum, que é a da
fenomenologia da religião, exige, por sua vez, um aprofundamento do que
entendemos por sagrado, bem como do que entendemos por religião. O cuidado
epistemológico consiste em discutir e delinear esse conceito, ter consciência
de sua amplitude e diferentes compreensões. Sobre o conceito religião pesa
ainda a questão do sentido, assim os conceitos são produzidos a partir da
experiência das pessoas e experiência também é algo sobre o que refletir.
Discutir religião e experiência tem somente uma grande razão
– e que ao mesmo tempo justifica sua necessidade, a de que esses dois termos
são julgados compreensíveis e compreendidos em vários ambientes, inclusive pelo
senso comum, do que decorre a certeza de que portam indefinições e
ambigüidades. O contraponto de teorias que os definem torna-se necessário e
obrigatório para a superação do senso comum e mesmo das pseudocertezas das
ciências. Aspecto importante na compreensão do termo religião é considerá-lo
como um termo acadêmico, uma categoria sem existência independente, criada para
análise. Contudo, não podemos perder de vista o risco deste afastamento da
concretude que tornaria a teoria religiosa definitivamente afastado da prática
religiosa, da experiência. Se a compreensão da religião estiver afastada da
experiência, como torná-la portadora de sentido, significado ou algo que o
valha? Talvez seja especificamente esta a questão que se coloca para o ER.
Referências bibliográficas:
CÂNDIDO, Viviane Cristina. O Ensino
Religioso em suas Fontes : uma contribuição para a epistemologia do
ER. 2004. 173 f .
Dissertação (Mestrado em Educação). Uninove, São Paulo.
_________________________.
Epistemologia da Controvérsia para o Ensino Religioso: aprendendo e
ensinando na diferença, fundamentados no pensamento de Franz Rosenzweig. 2008. 412 f . Tese (Doutorado em
Ciências da Religião). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
DENNETT, Daniel C. Quebrando o Encanto: a religião como fenômeno natural. Trad.
Helena Londres. São Paulo: Globo, 2006.
FÓRUM NACIONAL PERMANENTE DO ENSINO RELIGIOSO
- FONAPER. Parâmetros Curriculares Nacionais – Ensino Religioso. São Paulo: Ave Maria, 1997.
Parabéns Vivane pelo texto. Suas palavras lúcidas nos ajudam a refletir e a resignificar o ER. Tomei a liberdade de publicar no meu blog e irei compartilhar e refletir com os professores de ER aqui da cidade. Um grande abraço. Saudades.
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