quarta-feira, 28 de maio de 2014

Sou diferente - penso e existo na escola

Entendemos a escola como espaço e tempo de relações – espaço, fazendo menção a um lugar determinado, que é este e não outro; a escola específica, datada, murada, visível; tempo porque é passado, presente e futuro, é instante e de relações porque nela a vida que se vive junto acontece! Um espaço/tempo de relações, onde a diferença (a multiplicidade) é uma realidade em meio à qual, necessariamente, são constituídos os vínculos, para o bem ou para o mal, em que se dão as experiências.
 As relações se dão entre os diferentes e na diferença! Quando dizemos o diferente e na diferença estamos marcando duas situações, embora caminhem juntas. Ao dizermos o diferente referimo-nos ao outro, aquele que, simplesmente por ser outro já é diferente de mim; quando dizemos na diferença, fazemos referência à contingência, por exemplo, na escola os educandos estão imersos na diferença; especificamente nesse espaço/tempo estão em relação um eu e os outros, os quais, por serem outros e, portanto, diferentes, criam para esse eu um espaço/tempo na diferença.
Barbara Smith, em seu livro Crença e resistência: a dinâmica da controvérsia intelectual contemporânea alude a um problema ao qual teremos que dar maior atenção, a saber, a natural dificuldade que temos para aceitar e, mais ainda, conviver com o diferente, na diferença. Tal é a dificuldade, apontada por Smith, de considerar, individualmente, ou constituir, do ponto de vista teórico ou institucional, o que chamamos multiplicidade, em razão de nossas resistências às diferenças, seja do ponto de vista do indivíduo, seja numa perspectiva epistemológica:

Se aquilo em que acredito é verdadeiro, como o ceticismo ou a crença diferente de uma outra pessoa é possível? [...] uma tendência mais geral aqui, qual seja, “autoprivilégio epistêmico” ou “assimetria epistêmica”, isto é, nossa inclinação a pensar que acreditamos nas coisas verdadeiras e razoáveis em que acreditamos porque elas são verdadeiras e razoáveis, ao passo que outras pessoas acreditam nas coisas tolas e revoltantes em que acreditam porque há algo errado com elas. [...]. (SMITH, 2002, pp.17-18).

Note-se que não estamos tratando aqui apenas da diferença religiosa, aliás, temos como hipótese que, ao menos na escola, não é essa a diferença que mais importa para a vida que se vive juntos ali, mas tratamos dos diferentes magrinho e gordinho, dentes, sem dentes e dentes amarelados, com e sem óculos, cabelos lisos e encaracolados, com e sem posses, que pensam assim e de outro jeito, que gostam desse autor e não de outro, que aprendem ouvindo o professor ou lendo, e mais e mais, uma lista infinita de motivos para considerar o outro diferente e, portanto, passível de desconfiança nas relações e no conhecimento.
Martin Buber, em seu livro Sobre comunidade, ao pensar numa educação para a comunidade onde exista a “comunialidade”, ou seja, um estar juntos dinâmico, considerou que esta precisaria acontecer não sobre homens semelhantes e feitos, formados e ordenados de modo semelhante, mas sobre pessoas formadas e ordenadas diferentemente e que mantém uma autêntica relação entre si, considerando assim a diferença, a qual, como podemos constatar em nosso cotidiano, é inevitável. Partindo dessa diferença e da consideração da situação da humanidade contemporânea, Buber afirmou, como um dos sentidos da comunidade, a própria multiplicidade de pessoas e sua relação e apontou que a estrutura desta multiplicidade, por sua vez, não poderia reprimir ou impossibilitar a relação autêntica. (Cf. BUBER, 1987, pp. 87-88).
Por meio da realidade em que vivemos, cercados de exemplos cotidianos e diários de dificuldades para convivermos uns com os outros, a temática da diferença toma corpo e nos exige, de um lado, uma mudança de postura e, de outro, maior conhecimento para nos convencermos, nós e os outros, de que é na diferença que a vida acontece e pode, inclusive, ser mais rica! Barbara Smith e Martin Buber são sugestões de leituras para esse fim...

Referências Bibliográficas:

BUBER, Martin. Sobre Comunidade. Trad. Newton Aquiles Von Zuben. Seleção e introdução de Marcelo Dascal e Oscar Zimmermann. São Paulo: Editora Perspectiva, 1987. 
CÂNDIDO, Viviane C. Epistemologia da Controvérsia para o Ensino Religioso:  aprendendo e ensinando na diferença, fundamentados no pensamento de Franz Rosenzweig. 2008. 412f. Tese (Doutorado em Ciências da Religião). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 
SMITH, Barbara Herrnstein. Crença e Resistência: a dinâmica da controvérsia intelectual contemporânea. Trad. Maria Elisa Marchini Sayeg. São Paulo: Editora UNESP, 2002.




quarta-feira, 14 de maio de 2014

Se as religiões não dialogam, será que seu estudo pode promover o diálogo?

Tratando de Educação e Religião, como tema principal, pois entendemos que as questões religiosas estejam impregnadas na vida escolar, uma vez que fazem parte da experiência de alunos, pais e professores, nos deparamos também com as questões do ER - Ensino Religioso. Uma delas é a justificativa da presença dessa disciplina na escola como sendo um espaço para o diálogo entre as diferentes confissões religiosas. A questão é que se as religiões não dialogam, será que seu estudo pode promover o diálogo?
No que concerne ao ER, a proposição de reverência às crenças alheias parece muito distante da realidade, aparentemente impossível de se realizar concretamente. Segundo elas mesmas, todas as religiões originam-se do amor. Mas vejamos o que nos diz Daniel Dennet em seu Quebrando o encanto: a religião como fenômeno natural: “O fato de tanta gente amar suas religiões, tanto quanto ou mais do que qualquer outra coisa na vida, é realmente um fato a ser ponderado. Eu estou inclinado a achar que nada poderia ter mais importância do que aquilo que as pessoas amam. [...] O amor é cego, como se diz, e como o amor é cego, muitas vezes leva à tragédia: há conflitos nos quais um amor é jogado contra outro amor, e alguém tem que ceder, com sofrimento garantido em qualquer resolução”. (2006, p. 269)
Como vimos, Dennett aponta para o risco a que uma visão distorcida do amor, no que concerne ao campo religioso, pode nos conduzir, ou seja, aos fanatismos e fundamentalismos religiosos, conforme será demonstrado ao longo de sua obra e ao que chamará de formas cada vez mais tóxicas de religião.
Também os PCNER – Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Religioso, tratando da tradição religiosa e da construção da paz, reconhecem que “Lamentavelmente, o que predomina no mundo é o fanatismo que se propaga nas mais diversas esferas, agindo e apelando sempre para  o Transcendente, a Fé, a História e a Justiça Universal, a fim de legitimar seus direitos irrestritos e a supressão dos direitos do outro. Portanto, o não reconhecimento do outro sustenta a atitude de fanáticos e idealistas”. (FONAPER, 1997, p. 20). 
Dessa compreensão decorre a proposta para o ER:  “O Ensino Religioso necessita cultivar a reverência, ressaltando pela alteridade que todos são irmãos. [...] Só então a sociedade irá se conscientizando de que atingirá seus objetivos desarmando o espírito e se empenhando, com determinação, pelo entendimento mútuo”. (p. 20-21). Vamos às controvérsias:
Nos PCNER, o objetivo é cultivar a reverência via reconhecimento da alteridade, de modo a desarmar o espírito pelo entendimento mútuo. O eixo, que possibilitará a passagem dessa intencionalidade para a prática pedagógica, especificamente, os conteúdos, é a moral humana entendida como o sentido do ser, formado na percepção de valores. A alteridade será contemplada mediante o relacionamento com o outro; os valores e limites serão compreendidos a partir da compreensão dos valores e limites internos às diferentes tradições religiosas. Parece-nos que há controvérsias quanto a esse deslocamento do indivíduo para a instituição religiosa, pois, na escola, se tratarmos das Tradições/instituições religiosas, ao contrário da tolerância, traremos à baila as questões internas à essas instituições e que são aquelas que, justamente, inviabilizam o diálogo entre elas. Os valores e a moral são muito diferentes dentro das diferentes propostas religiosas.
Tomemos, como exemplo, a perspectiva do cristianismo abordado no eixo moral humana. Chegando aos conteúdos teremos que trabalhar, para sermos fiéis ao ponto de vista da instituição, os valores e limites intrínsecos ao cristianismo, claramente expostos pela Doutrina Social da Igreja, do que decorre que estamos no lugar apontado pelo Grupo do Não (em nossa dissertação de mestrado acerca das fontes do Ensino Religioso, chamamos assim os articulistas do jornal Folha de São Paulo e O Estadão, que se manifestaram contrários à implantação do ER, neste estado, no momento da publicação da Deliberação CEE 16/2001). Para esse grupo, tratar de valores e limites do ponto de vista de uma instituição religiosa é tocar em questões importantes, do ponto de vista da experiência e da vida dos educandos, mediados por uma perspectiva necessariamente normativa, e assim será seja qual for a religião tomada como ponto de partida.
Se, de outro lado, ainda segundo os PCNER, considerarmos o fenômeno religioso, consequentemente, mais propriamente a experiência religiosa, como o ER poderá ser capaz de estabelecer significados, uma vez que, da maneira como está ali proposto, corre o risco de permanecer na descrição dos fenômenos? Como estabelecer significados para a vida pessoal dos educandos e, conseqüentemente, para a vida que vivem juntos, ou seja, suas relações no espaço/tempo da escola? Por último, apresentamos os objetivos da disciplina:

Proporcionar o conhecimento dos elementos básicos que compõem o fenômeno religioso, a partir das experiências religiosas percebidas no contexto do educando; subsidiar o educando na formulação do questionamento existencial, em profundidade, para dar sua resposta devidamente informado; analisar o papel das tradições religiosas na estruturação e manutenção das diferentes culturas e manifestações sócio-culturais; facilitar a compreensão do significado das afirmações e verdades de fé das tradições religiosas; refletir o sentido da atitude moral, como conseqüência do fenômeno religioso e expressão da consciência e da resposta pessoal e comunitária do ser humano; possibilitar esclarecimentos sobre o direito à diferença na construção de estruturas religiosas que têm na liberdade o seu valor inalienável. (FONAPER, 1997, pp.30-31).

            E ainda: “Entende-se o conhecimento religioso, mesmo revelado, como um conhecimento humano. É a reflexão a partir do conhecimento que possibilita uma compreensão do ser humano como finito. É na finitude que se procura fundamentar o fenômeno religioso, que torna o ser humano capaz de construir-se na liberdade. (p.21). Questões mais específicas: o conhecimento revelado como conhecimento humano suporia crença na revelação? Se a compreensão da finitude é a raiz do fenômeno religioso, como ficam os não-crentes? Extrapolando um pouco: a instituição religiosa é, necessariamente ou somente, o lugar em que se dá o fenômeno religioso? Lendo os conteúdos propostos parece que não, mas de outro modo, a experiência religiosa necessária somente está contida na instituição ou na experiência que esta possibilita ao crente? E a experiência do não-crente? Se é o fenômeno religioso que torna o ser humano capaz de constituir-se na liberdade, as experiências fundamentalistas não são fenômenos religiosos? Há um critério para a definição de bons e maus fenômenos religiosos?
            Segundo os PCNER: “Todo o conhecimento humano torna-se patrimônio da humanidade. A sua utilização, porém, depende de condições sociais e econômicas bem como das finalidades para as quais são utilizados. Nem todo conhecimento é de interesse de todos. Um conhecimento político ou religioso pode não interessar a um grupo, mas, uma vez produzido, é patrimônio humano e como tal deve estar disponível. (p.22).
Especificamente, se a utilização do conhecimento depende de condições sociais e econômicas e das finalidades de sua utilização, estamos admitindo a perspectiva utilitarista como lente para leitura de mundo, de Deus e do homem? De maneira mais geral, o conhecimento, sob esse prisma, utilitarista, não poderia ser uma ou A fonte de cientificismos e fundamentalismos de todos os tipos? Ainda especificamente, estamos privilegiando o social, inclusive, acreditando-o determinante? Se o conhecimento político ou religioso pode não interessar a um grupo, quais os critérios para definirmos sua apresentação nas aulas de ER? De que forma o conhecimento político, perguntando-se antes por seu significado, interessa às aulas de ER?
            “Por questões éticas e religiosas, e pela própria natureza da Escola, não é função dela propor aos educandos a adesão e vivência desses conhecimentos, enquanto princípios de conduta religiosa e confessional, já que esses são sempre propriedade de uma determinada religião”.  (FONAPER, 1997, p. 22). Quais são as questões religiosas que indicam que não é função da escola propor aos educandos a adesão e vivência desses conhecimentos - os religiosos? Alguma religião será tomada como critério? Qual? O que significa vivenciar conhecimentos?
Em termos de referenciais, considerados a partir das Ciência(s) da(s) Religião(ões), constatamos que a perspectiva teórica do Fórum, que é a da fenomenologia da religião, exige, por sua vez, um aprofundamento do que entendemos por sagrado, bem como do que entendemos por religião. O cuidado epistemológico consiste em discutir e delinear esse conceito, ter consciência de sua amplitude e diferentes compreensões. Sobre o conceito religião pesa ainda a questão do sentido, assim os conceitos são produzidos a partir da experiência das pessoas e experiência também é algo sobre o que refletir.
Discutir religião e experiência tem somente uma grande razão – e que ao mesmo tempo justifica sua necessidade, a de que esses dois termos são julgados compreensíveis e compreendidos em vários ambientes, inclusive pelo senso comum, do que decorre a certeza de que portam indefinições e ambigüidades. O contraponto de teorias que os definem torna-se necessário e obrigatório para a superação do senso comum e mesmo das pseudocertezas das ciências. Aspecto importante na compreensão do termo religião é considerá-lo como um termo acadêmico, uma categoria sem existência independente, criada para análise. Contudo, não podemos perder de vista o risco deste afastamento da concretude que tornaria a teoria religiosa definitivamente afastado da prática religiosa, da experiência. Se a compreensão da religião estiver afastada da experiência, como torná-la portadora de sentido, significado ou algo que o valha? Talvez seja especificamente esta a questão que se coloca para o ER.

Referências bibliográficas:

CÂNDIDO, Viviane Cristina. O Ensino Religioso em suas Fontes: uma contribuição para a epistemologia do ER. 2004. 173 f. Dissertação (Mestrado em Educação). Uninove, São Paulo.
_________________________. Epistemologia da Controvérsia para o Ensino Religioso: aprendendo e ensinando na diferença, fundamentados no pensamento de Franz Rosenzweig. 2008. 412 f. Tese (Doutorado em Ciências da Religião). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
DENNETT, Daniel C. Quebrando o Encanto: a religião como fenômeno natural. Trad. Helena Londres. São Paulo: Globo, 2006.
FÓRUM NACIONAL PERMANENTE DO ENSINO RELIGIOSO - FONAPER. Parâmetros Curriculares Nacionais – Ensino Religioso. São Paulo: Ave Maria, 1997.