domingo, 1 de maio de 2011

Pó ou comida de vermes? Ciência e Fé em Machado de Assis

Alfredo Pujol, membro da Academia Brasileira de Letras e considerado o primeiro estudioso da vida e obra de Machado de Assis, acentua, em suas conferências, a originalidade do maior escritor brasileiro, sua superioridade em relação ao seu tempo, o desapego em relação ao ambiente externo e a intensidade de vida interior do pensamento que se traduzem numa “obra extraordinária, de rara unidade e de sedutora beleza, que é o monumento mais perfeito e mais sólido das nossas letras”.


A partir dessa constatação, podemos entender a dificuldade de nos aproximar da obra de Machado de Assis, ao menos se a quisermos entender de uma vez só ou por meio de uma única disciplina ou área do conhecimento o que, ao contrário, nos distanciaria de sua obra. Para nos aproximarmos é necessário, primeiramente, escolher um viés, uma particularidade e, depois, analisar, colocando em diálogo diferentes disciplinas e áreas do conhecimento, numa aproximação multidisciplinar.
Por esta razão, aqui escolhemos as Memórias Póstumas de Brás Cubas em duas referências machadianas aos “vermes”, a partir das quais queremos pontuar algumas reflexões acerca da imbricação entre ciência e fé, do lugar da Filosofia da Religião.
“Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas”. Este é o “epitáfio” escolhido por Brás Cubas, o defunto autor, para abrir suas Memórias. Nelas podemos encontrar elementos para a compreensão do tema da condição humana, vislumbrado no conto A Igreja do Diabo. Todavia, torna-se absolutamente necessário destacar que Machado de Assis não entrega essa questão a si mesma, ao contrário, aponta para uma questão fundamental, a saber, a morte como destino inexorável de todos nós!
E aqui queremos fazer duas observações capitais. A primeira de que esse livro marca, para a maioria dos comentadores, uma segunda fase da obra de Machado de Assis porque instala uma compreensão e um detalhamento mais agudo da condição humana. Nossa outra observação diz respeito ao fato de que nosso autor o escreve (ou melhor, Carolina, sua esposa, o escreve) internado num hospital, seriamente debilitado – a exemplo de Ernest Becker e seu livro A negação da morte (2007) e Franz Rosenzweig, mais especificamente no que se refere ao seu Novo Pensamento (2005). Em comum a escrita diante da morte!
Leonardo Vieira de Almeida, na obra À roda de Machado de Assis (2006), ao analisar as citações literárias nas Memórias Póstumas, destaca: “É no espaço da morte que Brás Cubas escreve suas memórias”. (p. 135).
Não é sem razão, que Brás Cubas, logo de início, deixará claro que não é um autor defunto, mas um defunto autor e isso, segundo ele mesmo, muda tudo. Muda porque escreve por estar diante da morte e muda porque toma a morte como dada, como dirá ele sobre a morte de seu pai: “Morreu sem lhe poder valer a ciência dos médicos, nem o nosso amor, nem os cuidados, que foram muitos, nem coisa nenhuma, tinha de morrer, morreu”. (p. 75). A constatação da inexorabilidade da morte é, por outro lado, a discordância radical da compreensão da ciência como absoluta e onipotente.
Se, de um lado, a vida nos faz perceber que podemos sim recusar a proposição religiosa, de matriz judaico-cristã, de que seremos pó, de outro, não podemos discutir com a Biologia e as Ciências Naturais acerca de nosso fim, pois, nos faltarão argumentos para negar que nossos corpos serão consumidos pelos vermes, num processo natural e para o qual caminhamos inexoravelmente.
Finalmente, compreendendo o homem como ele é, parafraseando Nelson Rodrigues, nosso autor, Machado de Assis, fará de Brás Cubas um filósofo da vida e da morte, que exatamente por isso, por tratar da vida e da morte do homem real, assim descreverá a Filosofia: “Todavia, importa dizer que este livro é escrito com pachorra, com a pachorra de um homem já desafrontado da brevidade do século, obra supinamente filosófica, de uma filosofia desigual, agora austera, logo brincalhona, coisa que não edifica nem destrói, não inflama nem regela, e é todavia mais do que passatempo e menos do que apostolado”. (p. 21).
Esse homem real será descrito em toda a obra. Morto, em sua condição de defunto, Brás Cubas é livre para falar das interioridades que nos acometem tanto quanto a ele mesmo e para demonstrar que o homem “é uma errata pensante... Cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes”. (p. 60).
É preciso ler as Memórias póstumas de Brás Cubas com coragem para perceber quão tênues são as linhas que, supostamente, dividem o lugar da ciência e o lugar da fé porque ambas são, na realidade, lugares do homem e marcadas, tanto quanto ele, pela provisoriedade da edição que, por sua vez, é determinada pelo tempo, o grande pêndulo da vida!


Viviane Cristina Cândido

Um comentário:

  1. Prezada Profa. Viviane,

    Acabo de ler este seu ensaio sobre Machado e agradeço sua citação ao meu artigo "A questão da biblioteca em ´Memórias Póstumas de Brás Cubas´ ", publicado no livro " À roda de Machado de Assis".

    Um abraço fraterno,
    Leonardo Vieira de Almeida

    www.leonardovdealmeida.wordpress.com

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