Um diálogo entre a Filosofia da Religião e a Filosofia da Educação!
Em sua coluna na Folha de São Paulo, Ilustrada, Luiz Felipe Pondé parte do pressuposto de que TODOS temos em nós um demônio vigilante, de tal modo, que se mostram totalmente abstratas as noções de homens e comunidades humanas boas, perfeitas e felizes. Somos o que somos. (Caso atentássemos a isso, permaneceríamos em vigília).
Essa é também a conclusão a que chega o alienista do conto homônimo de Machado de Assis, ao perguntar a si mesmo: “Mas deveras estariam eles doidos, e foram curados por mim, - ou o que pareceu cura, não foi mais do que a descoberta do perfeito desequilíbrio do cérebro?”. E eis o resultado a que chegou: “os cérebros bem organizados que ele acabava de curar [impondo-lhes desvios morais], eram tão desequilibrados como os outros. Sim, dizia ele consigo, eu não posso ter a pretensão de haver-lhes incutido um sentimento ou uma faculdade nova; uma e outra coisa existiam no estado latente, mas existiam”.
O pretexto de Pondé é a questão da autoestima, deflagrada, por sua vez, pela expectativa de um mundo melhor. Para contrapor-se a isso e falar do homem REAL, Pondé conta sua experiência pessoal como professor: “Meus alunos, moçada de 18 ou 19 anos, da elite econômica, lêem santo Agostinho. Eles discutem pecado, graça, inferno, o Mal, Deus, mito de Adão e Eva e afins”. Igualmente, entendo esses temas como temas do estudo da religião na escola. Não se trata de ensinar uma religião, não se trata de buscar adeptos para esta ou aquela religião, mas sim de refletir sobre as questões advindas da razão religiosa e que têm a ver com os seres REAIS que estão na escola – professores e alunos. Lembrando, mais uma vez, Machado, assim afirma Bentinho em Dom Casmurro: “a mentira é dessas criadas que se dão pressa em responder às visitas que “a senhora saiu”, quando a senhora não quer falar a ninguém. Há nessa cumplicidade um gosto particular; o pecado em comum iguala por instantes a condição das pessoas”. Falar do pecado, por exemplo, é assim falar de algo que nos aproxima...
Pondé continua: “E sem qualquer um desses "recursos didáticos" inventados para o professor não ter que dar aula ou não ter que entender do assunto. Quase toda a pedagogia "moderna" é blá-blá-blá. E grande parte dos problemas da sala de aula é fruto da baixa vocação dos professores e do fato de que grande parte dos estudantes não tem nenhuma vocação para aprender qualquer coisa além do que interessa para garantir um lugar no mercado de trabalho”.
Concordo com Pondé. A preocupação com a autoestima, na escola, no que concerne aos professores, se coloca na preocupação recorrente em agradar ao aluno. De um lado fazendo-lhe as vontades, numa espécie de permissividade moral, não lhe impondo nenhum limite – esquecendo-se de que educação pressupõe conflito e tensão - e, de outro, tornando os conteúdos “acessíveis” para que a dificuldade não faça com que o aluno desanime – esquecendo-se que como já afirmava o epistemólogo que era Piaget, aprendizagem pressupõe que o aluno se sinta desafiado, desacomodado, sem o que não caminha em direção a novos aprendizados.
Em seu livro Educação: certezas e apostas, Hubert Hannoun, filósofo da educação, aponta a perfectibilidade do educando como um dos pressupostos da educação. Educar presume que o educando tenha aptidão para receber a educação, pressupõe-se sua educabilidade, ou seja, perfectibilidade. Para o autor, a perfectibilidade não afirma apenas a essência evolutiva da pessoa; afirma também o valor positivo possível dessa evolução. O que se afirma como perfectibilidade do homem é o poder melhorar sempre. A distância que separa a animalidade da humanidade fundamenta o valor e explica o processo de perfectibilidade.
Na seqüência, Hannoun levanta questões referentes à possibilidade da redenção; à predestinação moral e educacional; a possibilidade de uma criança transformar-se no sentido de uma moralidade autêntica; se a natureza é um fator determinante do comportamento e, finalmente, se haverá perfectibilidade salutar ou inatismo predestinador. E afirma: “A noção de perfectibilidade inerente ao ato de educar comporta, pois, dois atributos: por um lado, a evolutividade da pessoa como portadora de possíveis; de outro, a positividade realizável desses possíveis apreciada relativamente a certa norma de bem (...). O problema da perfectibilidade, nesse caso, é a contrapartida do problema teológico da redenção”.
Assim, Hannoun coloca o problema da perfectibilidade, presente na modernidade, atingindo a vida das pessoas e a vida da razão como o lado, por assim dizer, secular, de um problema teológico que é a redenção. Contudo, devemos admitir que é tênue a fronteira entre a perfectibilidade como questão secular, podendo ser também uma questão religiosa e a redenção como sendo um problema religioso que, por sua vez, também pode vir a ser secular. Entendo que tudo isso aponta para a necessidade do estudo da religião na escola, como o lugar em que se faça o diálogo entre a razão, como a entendemos pela filosofia e pela ciência com a razão religiosa – os conceitos gerados por essa experiência. A questão aqui é que a perfectibilidade vem acompanhada da pecabilidade.
Finalmente, quando Pondé nos fala de sua experiência de levar santo Agostinho e os temas que citou para a universidade e quando, de minha parte, afirmo serem estes temas também para o estudo da religião na escola, queremos entender que o ato de ensinar alguém real, obriga que o façamos com realidade, ou seja, as questões que nos afetam devem permear o aprender e o ensinar que acontecem ao professor e aos alunos. Há aqui um exercício de entrega que deve ser, nas palavras de Hannoun, uma espécie rara de suicídio pedagógico no qual o professor, para além de preocupar-se com o amor a si mesmo, se revela em suas fragilidades e admite que viver e ensinar exigem vigília – olhar atento para o pior em nós. O suicídio pedagógico de Hannoun supõe um professor que é si mesmo em relação com outros si mesmos que são os alunos e é neste acontecendo que se dá a aprendizagem.
Ensinar tem a ver com ser. Voltamos a Machado, agora na fala de Brás Cubas em suas memórias póstumas, a fim de estabelecermos um paralelo na literatura com o problema, citado anteriormente, acerca dos limites. Cubas critica a educação que recebeu, vê nela certa responsabilidade pelo homem que se tornou. Assim conta: “meu pai tinha-me em grande admiração; e se às vezes me repreendia, à vista da gente, fazia-o por simples formalidade; em particular dava-me beijos”.
Leia mais sobre a Profª Drª Viviane Cristina Cândido e seus estudos sobre educação, religião e Machado de Assis, no site: educacaoereligiao.com.br
Viviane Cristina Cândido
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